autismo ?
Há uns dias atrás, vinha no carro e ouvi um pedaço de uma entrevista a uma escritora, na Antena 2. Não me lembro do nome da senhora - não era conhecida. Aliás não me lembro de muita coisa, mas houve duas ou três ideias que memorizei.
Lembro-me perfeitamente da senhora ter dito que não pertencia ao meio (academico-literário?) e que, portanto, se sentia muito mais livre (a proposito de um congresso a que assistira e no qual não conhecia ninguém além do seu editor).
Lembro-me que a mesma escritora se disse inculta relativamente à produção e às correntes literárias actuais.
Lembro-me ainda de ouvir a senhora dizer que precisava de distância em relação à sua vida, à sua infância e que, por outro lado, escreve sobre temas actuais, muitíssimo actuais, por querer estar perto da vida e do agora (- só precisa de distância em relação a si mesma, à sua vida pessoal).
O bocado de entrevista que ouvi fez-me lembrar imediatamente os compositores que, de costas voltadas para a época em que vivem, escrevem a sua música, sem fazer a mínima ideia do que está feito e do que está a ser feito.
Lembrou-me também uma aula de História da Música do Século XX, em que o prof. António Pinho Vargas falou do homem que consegue inventar e construir uma bicicleta, ignorando que por essa altura já muitas bicicletas circulam no mundo e que o céu é rasgado por poderosos aviões.
...A bicicleta é dele, claro! Não é uma cópia. É uma invenção. Quantas pessoas inventam uma bicicleta? No entanto, não deixa de ser uma bicicleta inventada depois de já terem sido inventados os aviões.
Lembro-me perfeitamente da senhora ter dito que não pertencia ao meio (academico-literário?) e que, portanto, se sentia muito mais livre (a proposito de um congresso a que assistira e no qual não conhecia ninguém além do seu editor).
Lembro-me que a mesma escritora se disse inculta relativamente à produção e às correntes literárias actuais.
Lembro-me ainda de ouvir a senhora dizer que precisava de distância em relação à sua vida, à sua infância e que, por outro lado, escreve sobre temas actuais, muitíssimo actuais, por querer estar perto da vida e do agora (- só precisa de distância em relação a si mesma, à sua vida pessoal).
O bocado de entrevista que ouvi fez-me lembrar imediatamente os compositores que, de costas voltadas para a época em que vivem, escrevem a sua música, sem fazer a mínima ideia do que está feito e do que está a ser feito.
Lembrou-me também uma aula de História da Música do Século XX, em que o prof. António Pinho Vargas falou do homem que consegue inventar e construir uma bicicleta, ignorando que por essa altura já muitas bicicletas circulam no mundo e que o céu é rasgado por poderosos aviões.
...A bicicleta é dele, claro! Não é uma cópia. É uma invenção. Quantas pessoas inventam uma bicicleta? No entanto, não deixa de ser uma bicicleta inventada depois de já terem sido inventados os aviões.
4 Comentário(s):
At 22/4/05 14:44, Sérgio Azevedo escreveu
Cara Diana,
Não posso absolutamente concordar com esse ponto de vista, pelo menos exposto assim, pois estás a confundir arte e técnica. Os conceitos de evolução das ciências, nomeadamente da tecnologia, que assentam sobre um princípio de utilidade (para quê inventar de novo uma bicicleta se a mesma já foi inventada ou há automóveis e outros transportes melhores?). A arte, embora já tenha tido uma certa utilidade social, não pode assentar de modo nenhum nesse princípio tecnológico. É por isso que encontras harmonias mais audazes em Gesualdo que em Mozart, ritmos mais complexos na Ars Nova que em Brahms e por aí adiante. A arte precisa do seu passado e reinventa-o constantemente, perdendo-se umas coisas e ganhando outras no processo. perde-se polifonia, ganha-se harmonia, perde-se complexidade, ganha-se clareza, e vice-versa, sempre assim. Como dizia Madame de Stael, "Só é novo o que está esquecido". Confundir um ramo do saber humano (a ciência e o seu sub-produto, a tecnologia), com um ramo do lúdico, a arte, é para mim o mesmo que invocar a ciência para provar que Deus não existe. São planos completamente afastados um do outro. A música não "evolui", a música "muda", o que é completamente diferente. A única coisa em comum é a limitação: se a ciência está limitada pelas leis físicas básicas (2ª lei da termodinâmica, velocidade da luz, etc), a música está limitada pela fisiologia do ouvido e do cérebro humanos, que se sabe não evoluiram estruturalmente desde que o homem moderno se formou há uns valentes milhares de anos. É por isso que a partir de certo número de vozes começas a ouvir harmonia ou textura e não contraponto, etc, etc. Esses limites impôem sempre que alguns princípios de construção musical se mantenham. E essa história de o artista ter de saber e seguir os ditames daquilo que o rodeia ou o que os outros estão a fazer ou não, não me parece válida: imagina que Charles Ives tinha feito isso? teria composto música tipo Dvorak em vez da sua música audaz, pois era isso que se estava a fazer nos EUA na altura e era aquilo que o público queria ouvir. Ao ficar de costas voltadas para o meio musical, Ives conseguiu produzir uma música sincera e própria. O mesmo aconteceu com Balthus, o pintor. Numa época em que se ciriticavam os pintores figurativos, pois a modernidade abstracta imperava, ele fez figura de reaccionário por pintar figuras. Encerrou-se no seu castelo (era rico, como Ives, pôde fazer isso) e pintou o que quis, sem ligar peva aos outros. O resultado? Passou a moda abstracta (também existem modas de vanguarda, e cultos do radical, não te esqueças, tal como existem modas reaccionárias e académicas) e agora Balthus é considerado um grande pintor, um representante da sua época. Acho um pouco perigoso quando se tenta impôr a um artista uma direcção. Ao fim e ao cabo, nenhum artista sincero vai mudar a sua via, o seu caminho, por os outros acharem que não está certo. Se há compositores que não seguem certas vias modernistas, e vice-versa, se há compositores que só seguem essas vias modernistas, cara Diana, estão no direito de o fazer, estão em território privado, estão na sua própria Obra. lembra-te do que diz Kundera em "Os Testamentos Traídos": "Aí, meu caro senhor, não está na sua casa" (referindo-se aos que tentam meter-se na obra dos escritores já mortos tentando fazer uma exegese que coincida, não com a obra do analisado, mas com os principios estéticos, éticos ou outros, do analista...).
Abraços,
S.
At 25/4/05 00:01, arte no tempo escreveu
Quais são, afinal, os grandes compositores, os grandes génios criativos que trabalham ignorando aquilo que os antecede e aquilo que os acompanha?
Não se trata de seguir ou de contrariar; trata-se da consciência que se tem em relação ao que se faz, no contexto global do que está feito e do que está a ser feito.
"A arte precisa do seu passado e reinventa-o constantemente". ...Isso acontece por acaso? Ou (porque) alguém tem consciência dessa "História"?
At 25/4/05 17:44, Sérgio Azevedo escreveu
Dou-te apenas o exemplo de Bach (há muitos mais) que nunca quis ir, por exemplo, ouvir "aquela musiquinha divertida" (a ópera), embora tivesse tido várias ocasiões para o fazer. Bach esteve voltado de costas para a música na moda na sua época. Talvez por isso fez o que fez, ignorando as modas. Aliás conheço muito poucos compositores que conheçam verdadeiramente o que se vai passando no mundo à sua volta. A maior parte ouve apenas aquela música que já confirma a sua escolha estética e nada mais. Isso não é estar de costas voltadas para o mundo. Nã imagino o Emmanuel Nunes a ouvir Philip Glass nem este a ouvir Boulez. Stravinsky só se interessou pelo dodecafonismo clássico já este estava morto e enterrado, e isso não o impediu de ser genial até aí. Mozart descobriu Bach no fim da vida, Nancarrow isolou-se da sociedade no México (onde dificilmente chegariam as novidades discográficas), Prokofiev, ao voltar para a URSS voltou as costas desde os anos 30 ao que se passava no Ocidente, o que não o impediu de escrever música genial, assim como Chostakovitch. Sibelius ignorou a modernidade mais espalhafatosa e por isso escreveu o que escreveu e é hoje uma inspiração para muitos contemporâneos (incluindo os seus conterrâneos, Lindberg, e outros, e para nomes como Maxwell Davies...). Enfim, podia continuar até à exaustão. Penso que estás a confundir conhecimento académico com verdadeiro conhecimento. Um compositor não é um saco de teorias e análises do que se passa no mundo. Um compositor é alguém que compõe, que escreve música. E essa música não vem de fora, vem de dentro. A evolução da música não se faz através de colóquios, cursos e seminários, mas através das vozes individuais de cada criador, inclusive os isolados e incompreendidos. muitas vezes o tempo deles só chega mais tarde, mas chega um dia. Penso que esse teu discurso é um tipo de discurso muito típico de um certo meio académico norte-americano, onde a música contemporânea sobrevive nas universidades à custa de conferências, colóquios, execuções privadas, comunicações, teorias e revistas, mas que nada tem que ver com a realidade musical. É um círculo de iniciados que vivem noutro planeta e pensam que um bom sistema faz uma boa peça. E sim, é possível em arte (mas não na tecnologia, mundos que confundes) cirar de novo outra bicicleta, pois nunca será exactamente a mesma. Como dizia Heraclito (sobre a estrutura da matéria), nunca nos banhamos no mesmo rio, pois nunca encontramos o mesmo rio de cada vez que o fazemos. Se leres o conto "O Quixote de Pierre Ménard", compreenderás o que te digo. É possível escrever de novo o Quixote, porque na realidade nunca o repetimos. Não existe repetição na História. Cada um de nós acrescenta algo de novo, e por isso as bicicletas musicais são possíveis na era dos jactos musicais, e por vezes até correm mais depressa...
Abraços,
S.
At 9/5/05 16:15, Sérgio Azevedo escreveu
Como a Diana não respondeu a esta última argumentação, posso depreender que já não tem argumentos, ou concorda comigo, ao fim de alguma "luta" (he...he...). Bem, não considero que uma troca de opiniões tenha de se saldar por uma vitória ou uma derrota, mas aqui ficam dois comentários de Jorge Luis Borges, um dos mais geniais e "avançados" escritores do século XX, insuspeito, creio, de retrogradismos, e que diz o seguinte sobre a questão:
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FALA BORGES:
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(sobre o termo "contemporâneos"):
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"Nada sei da literatura actual. Há tempo que os meus contemporâneos são os gregos".
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"Ao perder a vista (foi em 1955) deixei de conhecer muitos escritores contemporâneos. Como têm de ler para que eu escute, prefiro que me leiam, por exemplo, as histórias da literatura ou da filosofia. E além disso, em geral o que é contemporâneo não me interessa. Creio que se parecerá bastante comigo. Apesar de tudo, eu também sou contemporâneo. Pelo contrário, se se estuda literaturas de outras épocas podem-se encontrar novidades."
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