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domingo, 27 de abril de 2008

A revolução Peter Rundel


Depois de ter assistido a uma ...manifestação artística e a dois concertos de "Música e Revolução", com algumas decepções e algumas alegrias, destaco a figura de Peter Rundel como músico genial que é.

Comecemos pelo acontecimento da Sala Cyber...
Quando uma manifestação artística é anunciada e associada à sua divulgação surge o nome do Remix Ensemble, não se espera encontrar uma sala repleta de gente a conversar como se de fogo-de-artifício se tratasse. O Poema Sinfónico para 100 metrónomos (1962), de G. Ligeti (1923–2006), foi concebido como um happening, é certo, mas a substância de que é feito não é puramente visual. Da mesma forma que o público se senta para ouvir silenciosamente e aplaudir os músicos de Steve Reich, a citada obra de Ligeti não merece menor atenção, já que proporciona uma experiência singular e que representa, para além do seu próprio significado, uma etapa do pensamento do seu autor, que importa conhecer.
Ora, os músicos do Remix Ensemble que, na Sala Cyber da Casa da Música, na sexta-feira, lá libertaram os metrónomos no seu movimento caótico organizado, não eram propriamente do Remix Ensemble nem sequer músicos.
Os 14 a 22 minutos prometidos - talvez porque os metrónomos do Porto tenham mais corda do que se pensava - acabaram por se estender a uma duração de quase 40 minutos. E como se não bastasse o facto dos próprios elementos da Casa da Música terem dado o mote, conversando mais descontraidamente do que quem visita o Museu de Serralves (logo seguidos pelo restante público, num despreocupado “entra e sai” com conversa circunstancial), duas vezes se fez ouvir, alto e bom som, a chamada para o “evento sério” que decorreria daí a momentos na Sala Suggia.
Alguém terá conseguido prestar atenção (já para não falar de fruição) aos encontros e desencontros dos “ataques” quando já poucos metrónomos se mantêm em movimento? Alguém terá pensado que, se os pretensos músicos se tivessem mantido no local (em vez de o abandonarem em fila, após a “largada” dos pêndulos), o público se manteria atento como se de música se tratasse? ...Mas era ou não era música? E será necessária a presença de músicos no palco para que se ouça? Talvez seja, pelo menos na Casa da Música; talvez por isso lá sejam tão excessivamente escassos os concertos de música electroacústica pura e simples.
O último metrónomo parou mesmo a tempo de transferir para a Sala Suggia o teimoso público que permaneceu até ao fim da peça de Ligeti.

Seguiam-se duas distintas metades de concerto pelos dois agrupamentos residentes e respectivos maestros titulares – talvez seja melhor dizer-se “pelos residentes que mais regularmente trabalham”, uma vez que existe ainda a Orquestra Barroca da Casa da Música, que (infelizmente) não prepara ainda sequer um programa por mês.
A primeira parte foi absolutamente fora de série; dir-se-ia mesmo perfeita, não fosse alguma reserva relativamente à junção do Remix Ensemble com o soprano Marianne Pousseur (filha do compositor belga Henri Pousseur).
Em Zeitmasse foram perfeitos, no contraste, na energia, no som...
Substituíssemos Marianne Pousseur pour Christine Schäfer e a primeira parte do concerto seria digna de pontuação máxima (qualquer que ela fosse).
Naturalmente substituições não estão disponíveis e Marianne Pousseur não deixa de ser uma opção interessante, para Pierrot Lunaire. Um pouco mais de “sprech” e um pouco menos de “gesang”, com “amplificação” natural, talvez fosse a solução. Não podemos deixar de elogiar a interpretação de M. Pousseur, a sua versatilidade tímbrica no movimento entre os diferentes registos que foi criando, de acordo com o texto. Talvez o resultado corresponda ao máximo que pode atingir com o seu aparelho vocal (e, sublinhe-se, não foi nada mau).
O Remix Ensemble provou, uma vez mais, estar à altura dos mais reputados agrupamentos dedicados à música dos séculos XX e XXI.

A segunda parte do concerto trouxe-nos uma obra pouco tocada de um compositor não muito divulgado. François Joseph Gossec (1734-1829), oriundo da Valónia, viveu quase toda a sua vida em Paris, desempenhando um papel activo no meio musical da época: para além dum papel preponderante enquanto inspector na criação do Conservatório de Música de Paris (1795), fundou o Concert des Amateurs (1770), reformulou o Concert Spirituel (1773), no âmbito do qual dirigiu obras suas e de compositores seus contemporâneos, incluindo o Haydn tão “da moda”, na época.
A Sinfonia em Ré maior La Caccia (1763), que König interpretou com a ONP, é uma obra clássica confundível com um Haydn no interior do qual soasse uma instrumentação francesa, evidente no solo de sopros do Minuetto (não muito bem realizado na sexta-feira passada).
Todo o trabalho de König/ONP sobre esta obra exibe um som muito pesado e proveniente dos antípodas da interpretação historicamente informada. No segundo andamento notou-se um certo empastelamento nas cordas, uma afinação (generosamente) reticente e umas trompas “esborrachadas” que acabaram por corrigir na repetição. No terceiro andamento, para além da pouca elegância dos sopros, o aspecto menos positivo foi a insuficiente resposta ao contraste dinâmico exigido por König.
Se a sinfonia de Gossec poderia constituir material novo para a ONP, já o Prélude à l’après-midi d’un faune, de Debussy, não o é e nem por sombras isso se reflectiu na prestação da orquestra. A uma flauta decente mas tímida (a que faltou brilho) seguiu-se uma certa agressividade dos metais. Já a flauta “se abria”, uma linha de um oboé bonito, mais adiante um solo de trompa a recuperar alguma polidez, e a isto se resume um prelúdio raso, sem curva, sem forma.
O naipe de violoncelos sofre da velha desculpa de que os violoncelos são “engolidos” pela acústica da Sala Suggia, o que, mesmo assim, não parece válido para a rusticidade do som com que iniciou o Prelúdio e morte de Isolda, de Wagner. E o que podia ser um final feliz, acabou por ser apenas mais uma pequena decepção, com trompas afinadas mas feias, metais gritantes, vários ataques desencontrados - Liebestod um pouco mais bonito do que o Prelúdio.

Ontem, Sábado, o cenário foi um pouco diferente. Para desconsolo de alguns melómanos, nem A-Ronne recorreu à orquestra, nem os metais da Sagração da Primavera somaram o prazer de abafar um coro de câmara.
A primeira parte do concerto foi protagonizada por um grupo convidado, os Neue Vocalsolisten Stuttgart. ...Inspirava confiança, mas foi um pouco incauto não ter ouvido primeiro a gravação disponível na Wergo (se bem que o pior vê-se, não se ouve).
A-Ronne (de A a Z, em italiano arcaico) é a conhecida obra que parte de um texto de Edoardo Sanguineti, o qual é repetido vinte vezes quase integralmente. O poema, divido em três partes cujos temas são “princípio”, “meio” e “fim”, é construído com citações, em diferentes línguas, das mais diversas fontes, desde a bíblia, Dante, Eliot, Barthes, ou mesmo o Manifesto do Partido Comunista, terminando com as três últimas letras do alfabeto italiano antigo (ette, conne, ronne).
...Mas não é isto o que de mais importante se pode dizer sobre a obra. Se querem saber, ouçam-na e leiam o texto (tem tudo mais a ver com significado e contexto - diferente mas apontando para o mesmo sentido que outras obras para voz/fita de Berio).
A-Ronne, datada de 1974 e inicialmente composta como documentário radiofónico para cinco vozes, presta-se a diferentes cenários. Os Neue Vocalsolisten Stuttgart foram pelo pior, o de uma ridícula comédia que, sinceramente, não lhes ficava bem. Desadequada? Talvez não. ...Mas não teve graça.
Semi-concluindo: a primeira parte do concerto foi algo que, pessoalmente, não me atraíu. Há quem goste, claro. Há quem anua confortavelmente para não fazer feio. Sim, é Berio. E não me incomodaria algum exagero vocal em certas expressões, mas a encenação é um bocado ...para não levar a sério (porque nem sequer tem, de facto, graça).

Na segunda parte voltámos a ouvir a ONP, não com König, mas com Rundel. Também a Sagração da Primavera (1913), de Stravinsky, já tinha sido por ele dirigida na Casa da Música, à frente da ONP.
Em poucas palavras, esperava-se muito mais da orquestra. A leitura que Rundel fez da obra é absolutamente genial, enérgica, plena de garra (sem cavalgarias loucas), onde se joga elegantemente o elemento surpresa (associado a subentendidas nuances dinâmicas e a andamentos que, no contexto, se poderiam esperar ligeiramente mais rápidos ou mais lentos, com resultado sempre mais interessante do que o previsível). A escalas diferentes (do "momento" à "grande forma"), Rundel demonstrou uma concepção empolgante da obra.
A orquestra, porém, mostrou que precisa ainda de mais um considerável período de trabalho para atingir o nível que todos esperamos dela. Não há que atacar dando-a como um caso perdido, porque não o é. Temos é que lhe dar tempo, pois, afinal, os milagres não acontecem (pelo menos em tão poucos meses). Ia comentar naipe a naipe, mas os pontos fracos são mais ou menos comuns: é preciso trabalhar o som (sobretudo os metais, mas também as cordas – todas! – e as madeiras, que apresentam um trabalho muito irregular), a precisão nos ataques ...e pensar com elegância aquilo que lhes é proposto.
Rundel foi a grande surpresa deste fim-de-semana. Ninguém desconfiaria da sua capacidade, mas é superlativa a inteligência sensível com que dirige um genial Pierrot Lunaire numa noite e, na seguinte, com os meios à disposição, algo que vai para além de uma extraordinária maquete do que pretende com a Sagração da Primavera.
...Imagine-se o que faria Rundel com uma das grandes orquestras mundiais...

Tive pena de não ter ido hoje ouvir Gesualdo e Monteverdi. Também gostava de ter visto o que é que Christoph König faria com os músicos de Peter Rundel, na Sinfonia de Câmara nº1, de Schönberg. Mas quando o pequeno "Alves Barbosa" monta a bicicleta...
D. F.

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