Comentário ao concerto do Remix Ensemble
Peter Rundel, direcção
Pequeno Auditório da Casa da Música
Sábado, 12 de Março de 2005 - 21:00
O Pequeno Auditório (PA) da Casa da Música (CdM) abriu pela primeira vez as suas portas ao público, no passado dia 12, ainda em regime de pré-inauguração. Sob a direcção de Peter Rundel, o Remix Ensemble (RE) deu vida ao material sonoro que esteve na base dos testes acústicos feitos com a sala cheia, sem cortinas corridas e sem qualquer correcção acústica.
Não fosse a possibilidade de adaptar acusticamente a sala ao programa a apresentar, tendo em conta o número de pessoas presentes no mesmo espaço, poder-se-ia dizer que os intérpretes de obras inscritas na poética do silêncio teriam alguma dificuldade em se aproximar do limiar do inaudível no PA. Mas este concerto serviu precisamente para avaliar as características da sala, recorrendo-se a um conjunto de máquinas para as medições acústicas e a uma equipa de técnicos presente no local, de forma a garantir que tudo funcionará a um nível de excelência a partir da abertura oficial da CdM que, no PA, acontecerá com um concerto de música portuguesa pelo RE e a sua convidada OrchestrUtopica, em que o primeiro fará a estreia mundial de uma obra para violoncelo e ensemble de António Pinho Vargas (encomenda da CdM).
A reacção do público traduziu-se numa variedade de opiniões que abrangem uma visão de esperança, na antecipação das possibilidades de programação que a sala oferece, e de encantamento pela versatilidade do espaço – que inclui cadeiras soltas, a possibilidade de regular a altura do palco e a abertura de painéis acústicos nas paredes e no tecto -, não faltando manifestações de descontentamento e expressões de desconforto de quem se sentiu abafado pelo número de pessoas fechadas numa sala em que a plateia se encontra em plano horizontal (sem declive) e com as cadeiras demasiado próximas umas das outras.
Digna de nota é a "inovação" que a CdM pretende associar a todos os seus espectáculos: o horário anunciado é para ser cumprido, de tal forma que, ainda 5 minutos antes das 21:00, as funcionárias de sotaque acentuado começam a empurrar delicadamente as pessoas para o primeiro lanço das várias escadas que dão acesso ao PA. A manter-se este hábito, não hesito em afirmar que que a CdM já prestou à comunidade um serviço de valor incalculável.
Uma vez mais, o Remix Ensemble esteve ao nível dos melhores grupos profissionais que em todo o mundo dedicam o seu trabalho exclusivamente à interpretação de música contemporânea. Porém, talvez por se viver um ambiente de experimentação e de forte expectativa, as primeiras obras apresentadas no concerto não pareceram usufruir da mesma segurança de execução que as restantes. O programa proposto reuniu obras de três compositores-chave da segunda metade do século XX, nascidos na década de 1920 - Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez e Iannis Xenakis - e de dois compositores de uma geração mais recente - Enno Poppe (Alemanha, 1969) e Luís Cardoso (1972), numa sequência equilibrada, encerrando ambas as partes com as obras que faziam uso de maior número de músicos, sendo também as de maior amplitude sonora (Poppe e Xenakis, respectivamente).
Depois de "Kontra-punkte" (1952-53), aquela que Stockhausen considera como a sua Opus 1 e que conclui a fase pontilista da sua carreira (que precede o seu grandioso trabalho em torno da percepção do tempo), a segunda obra interpretada pelo RE foi "Knochen" (1999-2000), para 18 instrumentistas, de Enno Poppe - compositor, director artístico do Ensemble Mosaik, pianista, e maestro. Não apresentando uma escrita demasiado inovadora, "Knochen" é composta por momentos contrastantes, num percurso que conduz à diluição da intensidade sonora num jogo entre subtis percussões e acordes sustentados de menor densidade.
Menos inovadora ainda, mas exibindo uma escrita coesa, concisa, harmoniosa e apelando a uma certa sensualidade, "Serenata" (2002-03), para cinco instrumentistas, de Luís Cardoso, é aqui apresentada no âmbito do Prémio de Composição ESMAE / Casa da Música (iniciativa que visa incentivar a criação musical proporcionando aos jovens compositores o indispensável instrumento de trabalho que é a audição das suas peças).
As duas obras apresentadas por último foram ambas compostas no ano de 1984. "Dérive 1", de Pierre Boulez constituiu o momento musical melhor conseguido da noite. A experiente batuta de Peter Rundel parece ter sublinhado a fabulosa instrumentação de Boulez, pondo em evidência a divisão entre organização vertical ornamentada e contraponto presentes na obra.
O concerto encerrou com uma forte presença do grupo dando vida a "Thalleïn", uma das mais complexas obras de Xenakis.
Esperemos que esta sala, que ainda com cheiro a novo recebeu o público com obras consagradas do reportório contemporâneo (que importa divulgar) e com a música daqueles que iniciam agora o seu trabalho de criadores (que merecem o incentivo), funcione sempre como um espaço arejado de experimentação e dignificação da arte musical contemporânea.
DF